29/11/08

Nada será como antes…

As instituições não podem permanecer imóveis diante de uma sociedade em plena mutação e em um mundo globalizado. Torna-se urgente redefinir o papel do Estado que, nos últimos anos, na Europa e América Latina, foi enfraquecido pelo lobby da governança mundial das agências internacionais.

Por Marilza de Melo Foucher

Talvez a crise financeira e econômica impulsionada pelo templo do capitalismo neoliberal seja salutar para a social-democracia e a esquerda democrática, levando-as a pensar na redefinição do papel do Estado no socialismo democrático. O capitalismo, como previu Marx se fez universal e, hoje, assistimos a sua crise. Entretanto, devemos tirar lições do acontecido no século passado, não ceder a falsas verdades, manteve um pensamento aberto a outros pontos de vista. O momento é de balanço e busca de alternativas para o enfrentamento da globalização excludente, o que depende da capacidade de esquerda para criar um novo universo político de transformação social de re-politização global da realidade.

A esquerda européia não deve se contentar em fazer o diagnóstico da crise financeira. Ela deve reagir e fazer proposições face à desordem internacional deixada pela governança mundial e ditada pela doutrina neoliberal. Infelizmente, entre 1980 e 1990, anos em que a democracia social esteve no poder em vários países europeus, a reação crítica à globalização econômica foi mínima. Tampouco houve oposição ao modo de governança mundial não compartilhada - consolidada no início dos anos 1990 pelas grandes organizações internacionais (FMI e Banco Mundial). Os governos das grandes potências, ditos socialistas ou social-democratas, preferiram legitimar um novo imperialismo (multilateral), que, operado em forma de consórcio internacional, passou a ditar normas diretivas como referências maiores da doutrina econômica neoliberal.

As agências multilaterais prescreveram o receituário da “boa governança”, que refletia o poder hegemônico das finanças dos detentores do capital (norte-americanos e, em seguida, europeus). Eles pretendiam administrar o aparelho de Estado dos países do Sul, pelo centro do sistema do capitalismo mundial, neutralizando, dessa forma, o poder dos Estados como entidades reguladoras. Assim, os países periféricos, incluindo os emergentes, passaram a ser mais e mais desconsiderados no cenário internacional.

O mundo global em meio às normas neoliberais teria somente dois atores principais: as empresas e os consumidores. Para os teóricos da governança mundial, a concepção do Estado-Nação deveria ser enterrada. Esse passou a ser visto como intruso pelos novos teóricos. No seu lugar, deveria aparecer o Estado empreendedor - um bom acionista. Nesse sentido, se analisarmos a reação do presidente Bush, dos EUA, do presidente francês Sarkozy e da União Européia à crise, podemos afirmar que eles agem em coerência com a lógica neoliberal: o Estado intervém para salvar os bancos comerciais e passa ser acionista. Enquanto isso, na França, Sarkozy privatiza os serviços públicos e vai suprimir 13.600 postos de trabalho no setor da educação. O resto é retórica para ocupar o espaço da cena internacional e esquecer o resultado nefasto de sua política econômica destinada aos ricos.

A verdadeira solução para a crise não está em salvar a arquitetura atual do sistema financeiro

As medidas tomadas pelo poder central (Estados Unidos e Europa) de investir recursos públicos nos bancos comerciais que alimentaram a especulação financeira reforçam ainda mais a concentração de capital em patamares nunca vistos. Os recursos públicos devem ser investidos nos bancos de desenvolvimento. Não existe razão para que os bancos comerciais privatizem os lucros e o Estado seja chamado ou se ofereça para socializar com toda sociedade, as perdas oriundas da especulação financeira.

Criada para defender os interesses do mercado global, a governança mundial é quase uma estratégia de guerra econômica, onde os mais bem instrumentalizados dominam e impõe suas regras. Uma minoria governa sem legitimidade para uma maioria. O resultado das reformas adotadas pelo Estado neoliberal foi desastroso para o interesse geral das populações dos países do Sul. Quem pode esquecer do receituário do FMI imposto aos países da América do Sul recém saídos das ditaduras, tais como Brasil, Chile, Argentina, Paraguai e Uruguai? Os atores globais do neoliberalismo tentaram legitimar a idéia de que a sociedade e a economia podem por si mesmas se organizar sem a presença do Estado. Nesse sentido, ressalta-se o papel da mídia (em geral, controlada por grupos econômicos) na difusão desta concepção de governança por atores globais.

No momento em que a democracia triunfa na América do Sul, seus povos sonham com a constituição de um Estado-Nação que supere práticas ditatoriais, populistas e intervencionistas. Enquanto isso, os principais atores globais da “governança mundial” optam por um modo de organização da sociedade, centrada em torno do funcionamento “soberano” do mercado, sem regulação do Estado.

Como responder aos desafios da democracia, quando o papel do Estado se enfraquece no atendimento do cidadão e se fortalece para responder aos reclamos da política financeira sob controle dos grandes organismos internacionais e dos agentes transnacionais?

As crises econômicas transformavam-se em crises estruturais (sócio-econômica, política, cultural e ambiental) e atingiam seu patamar nos países periféricos. Raros foram os governos dos países do Norte que manifestaram sua solidariedade e solicitaram mudanças nas regras de regulação comercial internacional.

Todavia, uma governança mundial que governa sem governo, buscando “construir legitimidade” sem democracia representativa e resolve os conflitos internacionais sem necessidade de dispor de maioria, não pode perdurar diante do avanço da cidadania política dos países em crise que elegeram governos de esquerda e centro-esquerda no subcontinente sul-americano.

Pela primeira vez, as grandes potências percebem que a bolha especulativa navega pela rede mundial de computadores numa velocidade tal que os trilhões de dólares e euros se evaporam em segundos! Por falta de regulação mundial, a economia virtual entupiu-se de vírus que só o doutor Estado pode curar. Seus dirigentes aos poucos tomam consciência da desordem mundial, da qual foram os principais protagonistas. Daí as duras reações dos governos sul-americanos. Na abertura da 63ª Assembléia da ONU, Lula disse que a euforia dos especuladores transformou-se em angústia dos povos e acrescentou: “Está em curso a construção de uma nova geografia política, econômica e comercial no mundo. No passado, os navegantes miravam a estrela polar para ‘encontrar o Norte’, como se dizia. Hoje, estamos procurando as soluções de nossos problemas contemplando as múltiplas dimensões de nosso Planeta. Nosso ‘norte’ às vezes está no Sul”.

As condições propícias para a expansão do mercado global foram criadas, mas quem usufruiu desse sistema? Os mesmos que hoje decretam sua falência. Restou a ruína do Estado Providência, o último suporte de uma vida coletiva! O neoliberalismo nunca foi um modelo de desenvolvimento, mas de dominação. Como dizia o sociólogo suíço Jean Ziegler membro do Comitê Consultivo do Conselho dos Direitos Humanos da ONU, “O ser humano deixou de ser centro para ser periferia!”. Com a crise financeira, a consciência humana vai despertar, sobretudo nas democracias. A opinião pública vai entender a loucura deste neoliberalismo, desta poderosa potência de mão invisível do mercado, que baniu o homem como sujeito coletivo ou individual da história ou da economia.

Os que contribuíram na formulação do dogma anti-Estado voltam hoje a defendê-lo, não para que o Estado volte às funções para as quais foi criado, mas para salvar os bancos, transformando-se em Estado acionista. Dai os discursos de Bush e Sarkozy soarem como hipocrisia. Certamente a regulação mundial dos fluxos financeiros é necessária. Entretanto, a realidade demonstra que o esfacelamento do Estado, bem como o da coletividade, cedeu ao determinismo das bolsas de valores.

Os neoliberais querem socializar as perdas com aqueles que nunca foram convidados a compartilhar da mesa quando esta era farta. O pior é que eles encontram-se diante de um vazio institucional, com contornos mal definidos. O FMI não sabe como reagir diante da crise dos países ricos, e as reuniões da OMC continuam sendo diálogos de surdos. A governança mundial de ideologia neoliberal é morta e ninguém quer carregar seu caixão. Diante da impossibilidade da gestão da crise do sistema econômico mundial pelo neoliberalismo, os discursos proliferam para re-fundar o capitalismo. Os políticos e os economistas que substituíram Keynes por Milton Friedman, precursor do neoliberalismo, preferem ressuscitar Keynes para salvar a desordem mundial deixada pela prática neoliberal, que postulava às cegas a idéia de que a força do mercado por si só iria gerar progresso e impulsionar o desenvolvimento econômico. Agora, a tendência se inverte: o Estado deve ser reabilitado para regular o mercado e pagar a conta da derrocada do capitalismo neoliberal. O paradoxo é buscar soluções, no nível local, para a crise global. Agora, exige-se uma resposta política e não mais econômica.

Como transformar a fatalidade em oportunidades?

Os governos de esquerda e centro esquerda que estão no poder, ou, que se preparam para assumi-lo devem aproveitar as ambigüidades do discurso da direita sobre a volta do Estado, para propor uma nova engenharia do Estado republicano e democrático. Um Estado que guarde todos os fundamentos de seu papel como regulador da coesão territorial, política, econômica, social e ambiental. Um Estado que possa assegurar um eco-desenvolvimento consentâneo com cada realidade, construído dentro de uma visão sistêmica em que o econômico não seja predominante, e simplesmente inserido num sistema de produção de utilidade social e ambiental.

As instituições do Estado não podem permanecer imóveis diante de uma sociedade em plena mutação e em um mundo globalizado. Torna-se urgente redefinir o papel do Estado que, nos últimos anos, na Europa e América Latina, foi enfraquecido pelo lobby da governança mundial das agências internacionais. O Estado deve se fortalecer para responder aos desafios da crise estrutural deixada pela ideologia neoliberal.

Por isso, cabe ao Estado republicano e democrático instaurar uma governabilidade que esteja a serviço de um desenvolvimento economicamente eficiente, socialmente eqüitativo e ecologicamente sustentável. Este tipo de desenvolvimento se funda na busca de integração e de coerência das políticas setoriais. Por esta razão o eco-desenvolvimento territorial exige um tratamento conjunto dos efeitos econômicos, sociais e ambientais de todas as ações governamentais. Este procedimento holístico exige que a realidade seja diagnosticada a partir da visão pluridisciplinar.

A elaboração e execução de qualquer programa, plano, projeto e atividades concernentes ao eco-desenvolvimento territorial, devem ser viabilizadas através de relações de parcerias múltiplas, a partir de contratos de objetivos precisos na definição do papel de cada ator envolvido. Seu sucesso depende da reciprocidade da cooperação entre diferentes áreas do conhecimento, entre elas a economia, a sociologia, a geografia a ecologia, a biologia e a antropologia, bem como de diversos setores tais como o dos transportes, do saneamento básico, da infraestrutura urbana, do meio ambiente, da assistência social e o da organização territorial. Tudo com a presença de categorias e segmentos sociais representativos (segmento empresarial, instituições associativas, órgãos institucionais, e não governamentais, sindicatos), agindo em níveis de escalões territoriais diferentes, seja em termos local, regional, nacional e internacional. Não existe eco-desenvolvimento territorial sem visão integrada da realidade e sem participação ativa da cidadania política. A mobilização e o envolvimento de todos os atores da sociedade civil não significa instrumentalização, mas, colaboração na co-gestão do eco-desenvolvimento territorial. Todos os atores sociais devem ter a possibilidade de engajamento nos processos de decisão. Será somente através da participação da cidadania e de um procedimento integrado e articulado que o desenvolvimento garantirá sua sustentabilidade.

A utopia compartilhada é que faz avançar a história, e nos faz avançar na concepção de um mundo mais solidário.

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