25/04/10

25 ABRIL - INÉDITOS

25 DE ABRIL DE 1974

UM DIA NA VIDA DE UM JORNALISTA…


testemunho de Pedro Laranjeira
com fotografias de Jorge Castro
(originais nunca antes publicadas)


Ao romper da nova aurora, o Terreiro do Paço ia acolhendo revoadas de madrugadores a caminho de um dia de trabalho que não iria acontecer.


A revolução estava na rua.


Os cravos só chegariam depois, mas o perfume da surpresa deixava em aberto um pender de balança que ainda não se percebia bem: de um lado a suspeita de novos desaires, pela força de um regime enraizado por décadas, do outro a esperança, uma luz ao fundo de um túnel de vozes sem medo que começavam a lançar o grito de muitas ânsias contra as paredes desertas dos ministérios abandonados.


Quem ali chegava já não seguia os destinos rotineiros, quem passava ao lado era atraído pelo crescendo de vozes, pelo ajuntamento, pelo mistério do que estaria a passar-se, logo substituído por uma entrega de coração fosse ao que fosse que aí viesse, desde que se vestisse de novas roupagens e uma promessa de mudança.


A multidão engrossava, a velha praça do comércio ia-se enchendo de portugueses.


Havia alguma confusão na troca de olhares, ainda... eram mais os que perceberam de imediato, mas na multidão havia rostos baixos e um deslizar para as periferias: assistir, sem mostrar o pensamento... até ver no que tudo dava.


De repente, a sensação de que um pássaro furtivo tinha pousado junto ao edifício da Câmara, na Praça do Município. Um tanque marcava, claramente, a força da resistência, enquanto o Capitão Salgueiro Maia, mesmo ao lado, ordenava ainda a posição dos carros de combate com que, horas mais tarde, faria cair finalmente a ditadura.


É o tipo de situação a que um repórter não resiste...


Hoje acho ridículo, não o que fiz, mas o que pude fazer sem que ninguém mo impedisse: subi para o tanque estacionado para tentar dialogar com quem o ocupava... como ninguém estava visível, nem uma cabeça de fora, mergulhei metade do corpo, cabeça para baixo, na abertura circular do tanque, até quase encostar a cara a um militar que lá dentro não sabia bem como lidar comigo. Perguntei-lhe: “o que é que estão aqui a fazer?...” – a resposta foi, no mínimo, bizarra, mas foi esta, palavra por palavra: “Eu praticamente não sei o que é que estou aqui a fazer!” – acrescentou, no entanto, que, sob ordem superior, estava preparado para abrir fogo contra “qualquer acção inimiga”.


Não me soube explicar o que entendia por “acção inimiga”, era o que lhe mandassem fazer... mas nem mesmo o brigadeiro em desespero que dera origem àquele estertor chegou a conseguir que ele, ou os seus camaradas de armas, as chegassem a usar.



Dei uma volta à praça, até à amurada junto ao rio, onde uma coisa estranha me prendeu a atenção. Um vaso de guerra manobrava bem à nossa frente, com os motores a trabalhar e esteiras de espuma a mostrar as mudanças de posição.


Muitas histórias se têm contado sobre este episódio, a maior parte delas fantasiosas, porque hoje se sabe o que se passou. Tratava-se da Fragata Almirante Gago Coutinho, comandada pelo Capitão Seixas Louçã, pai do actual líder do Bloco de Esquerda.


Naquele dia e naquele local, foi fácil imaginar que o barco manobrava para atingir uma posição ideal de tiro e que iria abrir fogo sobre o Terreiro do Paço. Muita gente pensou isso, nesses minutos. Se tivesse acontecido, teria sido um gigantesco banho de sangue, uma vez que por essa ocasião estavam na praça mais populares que soldados.
Só muito mais tarde, porém, se veio a saber que nunca existiu o menor perigo. A fragata esteve sempre sob o firme comando do seu Capitão, que era um conhecido opositor ao regime vigente e teve o cuidado de mandar colocar todas as peças de artilharia, que nunca estiveram carregadas, no máximo grau de elevação, para que as tropas de Salgueiro Maia percebessem que não tinha intenção de abrir fogo. As manobras destinaram-se a oferecer o menor flanco possível a uma ameaça entretanto recebida de que o vaso de guerra estava na mira dos canhões do Forte de Almada e do Cristo-Rei.


Portanto, nunca ouve perigo, mas nessa altura ninguém o sabia... e o sustou ficou na memória de quem ali esteve.







Entretanto, Salgueiro Maia reuniu os jornalistas presentes e deu-nos um “Unimog” para integrarmos e acompanharmos a coluna que iria avançar sobre o Carmo, onde se sabia estarem os membros do governo, incluindo o próprio Marcello Caetano.





Foi então que, verdadeiramente, começou a Festa!


O povo acompanhou as viaturas militares até ao Rossio e na subida do Chiado, onde pela primeira vez começou a ouvir-se, por entre gritos e palavras de ordem, o Hino Nacional.


Cada vez era maior o coro de vozes. Já não havia dúvidas sobre o significado daquilo tudo. Dos gritos mais comuns, dois dos que maior número de vezes se fizeram ouvir foi o de “acabem com a guerra colonial” e “libertem os presos políticos”, sempre pontuados por um “Viva a Liberdade” que surgia de todos os lados e era tom de mil vozes.


A mudança estava em marcha.


Chegados ao Largo do Carmo, as pesadas portas estavam fechadas.


O comandante das forças distribuiu os seus homens e as viaturas, durante um longo impasse em que todos os receios chegaram de muitas origens, incluindo a informação de que um héli-canhão se preparava para “limpar” o Largo.


Mas nada de dramático interrompeu o curso de um dia que já nada faria parar. Passou um avião, depois um helicóptero, mas entretanto Salgueiro Maia confirmara que todo o aparelho militar significativo estava sob o seu controlo e tinha plena confiança no propósito inicial, que havia sido conduzir as operações de modo a que não houvesse baixas.


Houve, sim, alguns sustos, mas nada que fizesse uma diferença de maior no desenrolar das coisas.






Alguém avisou que uma coluna da GNR se dirigia para o Largo Rafael Bordalo Pinheiro, o que dividiu os populares entre uns poucos que fugiram e uns muitos que para lá foram, esperá-los.


Salgueiro Maia colocou homens em posição e deu-lhes ordem para não abrir fogo.


Quando a coluna chegou ao Largo, foi recebida com pedras e apupos, por entre as notas da “Portuguesa”. Mas limitaram-se a ficar de pé, à frente dos carros, sem tentar sequer uma ocupação que teria sido impossível.


Foi um momento tenso, no entanto, em que tudo poderia ter sido estragado.


Mas o bom senso prevaleceu e militares de facções opostas, separados por menos de dois metros, armas nas mãos e olhos nos olhos, souberam cumprir as ordens de manter as armas caladas e ir construindo uma revolução sem sangue.


Como Salgueiro Maia havia comentado minutos antes, eram todos portugueses, irmãos de farda e irmãos de raça, não iriam abrir fogo – e não o fizeram!


Mas houve quem não se comportasse à altura dessa nobreza: onde as fardas tinham respeitado a vida, as forças civis não encontraram a mesma capacidade... e os tiros chegaram ao Chiado...


Foi o início da única mancha que ensombrou o 25 de Abril. Da sede da PIDE-DGS, na António Maria Cardoso, veio a prova de que o regime ensinara bens os seus peões. Um grupo de populares com uma bandeira nacional e o hino nas vozes foi recebido a tiro. Primeiro atiçaram-lhes um cão, de que se protegeram com paus de uma obra anexa, depois dispararam, rajadas sucessivas. Foi aquilo a que os ingleses chamam “fist blood”, apontando para quem o derrama: naquele dia, foi a polícia política que derramou o primeiro, numa atitude que culminaria nessa mesma noite, já a revolução era vencedora e o governo estava deposto, com um banho de sangue em que quatro pessoas foram mortas e quarenta e cinco feridas.


No melhor pano cai a nódoa e, se a revolução dos cravos ficou para a história como a pureza desse linho, os agentes da então ex-polícia política foram quem sujou a pintura, neste caso de vermelho-sangue.


Nessa longa tarde de expectativas e ânsias, houve nervos de todas as franjas.






Quase em permanência, o receio de atiradores furtivos nos telhados: problema que o alferes Carlos Beato, hoje Presidente da Câmara de Grândola, resolveu com a ocupação dos pisos superiores do prédio à frente do quartel, mas sem abrandar os cuidados até ao último momento, não fosse o diabo tecê-las.




Depois, os sucessivos pedidos de rendição de Salgueiro Maia às forças sitiadas, vários prazos alargados, ultimatos sem resultado.


Ele próprio chegou a recear o pior e tentou evacuar os civis do Largo, mas sem êxito.


Do outro lado, silêncio.


Perante o impasse, o Capitão deu ordem a uma Chaimite para abrir fogo sobre o topo do edifício.




Foi um momento electrizante, quando aconteceu.


Aliás, devo dizer que o foi particularmente para o Adelino Gomes e para mim, que passamos por uma das mais arrepiantes experiências a que alguém pode ser exposto:
uma multidão em pânico.


Estavamos por detrás da Chaimite que abriu fogo sobre o quartel e quando as cápsulas das balas da auto-metralhadora começaram a chover-nos sobre as cabeças, a multidão que nos engolfava entrou em pânico e fomos arrastados rua abaixo, por um dos becos que sai do Largo.


Percorri seguramente 15 metros sem que os pés me tocassem no chão, perdi um sapato, partiu-se-me um dos gravadores. Ainda hoje tento imaginar o que teria sido se a mole humana, ao invés de me “espremer” para cima o tivesse feito para baixo...


Entretanto, a pressão que mantinha os militares tão tensos como cordas de uma viola, cedeu finalmente perante o tonitroar da Chaimite e o tiroteio generalizou-se. Foram precisas repetidas ordens de “alto ao fogo” através do magafone de Salgueiro Maia até que conseguisse pôr um fim às rajadas, mas fê-lo sem que uma única bala perdida tivesse encontrado carne.




Um coronel mensageiro que entrara algum tempo antes no quartel saiu entretanto e bastou abordá-lo para perguntar se tinha ou não havido rendição para perceber que as coisas não estavam a ser fáceis: chamou-nos chatos e gastou mais tempo a perguntar-nos se quando uma senhora estava a ter um filhos nós íamos perguntar-lhe se estava com dores do que a responder com um simples sim ou não, o que não fez...


... era uma tarde de nervos, certamente de todos os lados.


Foi por causa desse nervosismo à flor da pele que Francisco Sousa Tavares acabou por subir a uma guarita, mesmo à porta do quartel, e exortou a multidão a manter a calma e a dignificar as conquistas acabadas de alcançar, retirando ordeiramente, para que as forças armadas vitoriosas pudessem concluir o dia glorioso que haviam inscrito nas páginas do nosso futuro.


Foram seis horas e meia frente ao velho bastião da guarda, até que Spínola recebesse a rendição de Marcello Caetano, que pedira “a presença de um oficial general, a quem entregaria o poder, para que não caísse na rua”.


... e foram trinta e seis anos desde então!


O mundo deu muitas voltas, Portugal também.


Somos agora um povo mais livre, onde não é preciso calar o pensamento!


Resta-nos continuar a aprender e ensinar aos nossos filhos que a liberdade não é um bem que sempre existiu nem se perpetua a si própria: é preciso saber construí-la em cada dia e dar-lhe a dignidade com que a História nos recordará!