27/04/10

o porquê da canção Grândola


Escrito por Pedro Laranjeira


…o porquê da canção de Abril


…um testemunho de Pedro Laranjeira


Conto esta história na primeira pessoa, porque é a narrativa de uma experiência de vida (mesmo vida de jornalista) que nem muitos anos de aventura fariam esquecer jamais.


Faço-o porque muita gente pensa ainda que foi a letra do “Grândola Vila Morena” que fez dela a canção escolhida para transmitir a “senha de avanço” ao movimento das forças armadas, na noite de 24 para 25 de Abril de 1974, que foi a mensagem do poema ou a figura de José Afonso, per se … mas não… se tudo isso pesou, e pesou decerto, a composição do Zeca tornou-se o símbolo da revolução dos cravos por muito mais, por um significado que adquiriu menos de um mês antes. Foi num acontecimento público a que Lisboa assistiu, em que participaram muitos portugueses, de forma espontânea, mas que passou relativamente despercebido na comunicação social de então, nesses tempos em que a Imprensa, para falar de certas coisas, tinha que fazê-lo “nas entrelinhas”...


Estava-se em Março de 1974.


A Casa da Imprensa organiza, no Coliseu dos Recreios, em Lisboa, o “Primeiro Encontro da Canção Portuguesa”, destinado a entregar prémios de imprensa, rádio, televisão, música, literatura e bailado.


Quase não aconteceu, porque a necessária autorização nunca chegou. Segundo declarações de José Jorge Letria à Visão, trinta anos depois, “O regime já estava nitidamente em fase de implosão. Quiseram derrotar-nos não com uma proibição do Festival, mas com uma não-resposta. Até ao dia do espectáculo ainda não sabíamos se tínhamos, ou não, autorização. Por volta das 17 e 30 do dia 29, quando cheguei ao Coliseu, já havia muita gente à sua volta, e ao fundo da Avenida da Liberdade lá estava a polícia de choque, os carros de água… estava a desenhar-se ali um confronto”…


O ambiente no país era tenso, nesses dias: menos de duas semanas antes tinha ocorrido o golpe frustrado de 16 de Março, a censura agia com autêntica ferocidade.


Eu trabalhava como repórter free-lance, então, principalmente para o programa “Limite” da Rádio Renascença (o tal que tocou o “Grândola Vila Morena”, numa jogada encenada pelo Manuel Tomás e pelo Leite Vasconcelos, de que nem a Rádio soube até ter acontecido) e fazia em média umas seis reportagens de exteriores por semana, das quais raramente mais do que uma passava as malhas da censura.


Nessa noite, fui para o Coliseu, armado com um gravador e uma enorme vontade de conhecer algumas das vozes com que há anos tentava enganar os censores da rádio em Moçambique, antes mesmo de o vir tentar para Portugal.


O ambiente era quente, por todos os motivos e a despeito de uma primavera ainda fria… os bilhetes tinham sido todos vendidos e houve quem ficasse à porta. Esperavam ouvir-se muitas das vozes que pouco passavam nas rádios.


O Subsecretário de Estado da Informação e Turismo, Caetano de Carvalho, ainda foi ao Coliseu tentar evitar que o concerto se realizasse, “em nome da sensatez”, mas a decisão dos organizadores foi diferente: o espectáculo iria para o palco, mas os intérpretes sujeitar-se-iam a cantar apenas as canções autorizadas pelo regime – havia uma extensa lista de letras proibidas e José Afonso e Adriano Correia de Oliveira tinham sido impedidos de actuar.


Todos os artistas convidados iam participar gratuitamente e o regime percebeu que era melhor não insistir na proibição, que poderia ter levado a uma noite de má memória em Lisboa.


Felizmente não foi assim. Para minimizar os estragos que o espectáculo iria certamente causar à imagem do regime, o governo fez deslocar para o Coliseu várias centenas de agentes da ex-PIDE, que então se chamava DGS, misturados com os espectadores, para o que desse e viesse.


Apesar de todas as proibições prévias, a primeira coisa que vi quando cheguei aos bastidores foram dois cavalheiros da comissão de censura a verificar as letras de tudo quanto ia ser cantado – o visado era Adriano Correia de Oliveira, depois seguiram-se todos, sem excepção - o Zeca lá conseguiu ordem para cantar o Milho Verde e uma música alentejana que não pareceu perigosa aos senhores do lápis vermelho, o “Grândola”…


Houve prémios para António Ramos Rosa, Sérgio Godinho, António Vitorino de Almeida, Jorge Peixinho e Patrick Hurd, mas só Carlos Trincheiras, Adelino Gomes e Nella Maissa estiveram presentes para receber os seus.


Do palco, a música abraçou um Coliseu com cerca de sete mil pessoas.


Ali estiveram, entre outros, Carlos Alberto Moniz e Maria do Amparo, Pedro Almeida, Fausto, Barata Moura, Vitorino, Adriano Correia de Oliveira, Zeca Afonso, Carlos Paredes, José Jorge Letria e Manuel Freire.


Tudo correu bem, ou antes, de bem a melhor, até à chegada ao palco do cantor andarilho. Zeca cantou o Milho Verde e a plateia começou a pedir as canções que mais gostava… “Os Vampiros”, foi um grito que ouvi de vários lados.


Nessa altura, decidi sair dos cantos laterais do palco onde estivera até então e fui para a plateia, gravar mais de perto todo aquele ambiente.


José Afonso tentava passar a mensagem de que não podia cantar o que o público queria… “Não pode ser, percebam… vamos cantar outra coisa…”


E foi então que se começou a fazer História.


Zeca cantou o Grândola. A meio, a plateia juntou-se-lhe, depois o resto do Coliseu, e também os artistas todos que tinham estado em palco até então – voltaram, deram-se braços, cantaram juntos, numa fila que enchia toda a largura de cena.


A canção estava no fim, por essa altura… e foi natural que nem chegasse a terminar, recomeçando, agora a sete mil vozes, meia dúzia com microfones, o resto a plenos pulmões!


Eu corria de pessoa em pessoa, recolhendo testemunhos que não conseguia ouvir, microfone encostado às bocas, um grito junto aos ouvidos sempre que fazia qualquer pergunta…


O som era avassalador, uma música simples, uma letra que todos sabiam, sete mil peitos em riste… até àquilo que foi a mais impressionante manifestação espontânea a que assisti em toda a minha vida!


Já o Grândola ia em fins de segunda volta, aconteceu o inesperado: não sei como começou, não sei quem começou, mas foi instantâneo, simultâneo, como se tivesse sido ensaiado – e ninguém o imaginaria meio minutos antes…


… a certa altura, em vez de a música continuar alentejana, a próxima estrofe, o próximo acorde, o próximo verso foi o primeiro do Hino Nacional – assim, sem pausa, sem transição, sem que ninguém tivesse dito nada… parece que foi um sentimento colectivo que sete mil pessoas tiveram no mesmo segundo!


Grândola Vila Morena transformou-se em Heróis do Mar e foi todo cantado, da primeira à última estrofe, do palco ao balcão, dos camarotes às galerias, da plateia aos corredores agora cheios, sete mil portugueses de pé a fazer vibrar a sala com o hino da pátria amordaçada, numa repentina liberdade assumida por cada um, ali e então.


Nada poderia ter sido mais claro, nenhuma frase poderia exprimir melhor o que nenhumas palavras disseram nessa noite, nenhum grito faria mais sentido.


Foi um momento que ficou escrito em letras de memória para quem lá esteve, um momento inolvidável, uma pedra de História.


Tinha nascido a razão maior por que “Grândola Vila Morena”, menos de um mês depois, se tornaria a escolha natural para uma senha que iria abrir as portas a um país novo!



da esquerda para a direita: Barata Moura, Vitorino, José Jorge Letria, Manuel Freire, Fausto, Zeca Afonso e Adriano Correia de Oliveira