21/05/10

A MATILHA

Por Luís Nazaré
Economista

A matilha

A debilidade dos mecanismos de solidariedade financeira no seio da zona euro é real e notória. Sem esses dispositivos, qualquer crise num Estado-membro pode conduzir à ruptura do sistema

Está à vista de todos – o euro está a sofrer um ataque feroz, o mais violento de que há memória desde a sua criação. A coligação de interesses especulativos e antieuropeus vive momentos de indisfarçável felicidade perante as dificuldades do Velho Continente, embora receie o efeito de ricochete sobre o sistema financeiro norte-americano. Só assim se explicam as chamadas telefónicas de Obama para Merkel, apelando ao empenhamento alemão na resolução do problema grego.

Recordemos que a actual crise económico-financeira se desencadeia a partir dos Estados Unidos com a chamada bolha do subprime (excesso de crédito hipotecário concedido pela banca + risco elevado + ganância dos agentes de mercado + desinformação dos consumidores), a que se sucede a falência do banco Lehman Brothers. A partir daí, num efeito-dominó, a crise alastra à banca europeia, pondo a nu as fragilidades do sistema bancário, o descontrolo das contas públicas de alguns países e a ausência de mecanismos europeus de solidariedade financeira para a defesa da sua moeda e dos momentos mais difíceis dos seus estados-membros.

As situações de incumprimento nos Estados Unidos estão longe de ser raras. Muito recentemente, o estado da Califórnia esteve à beira da bancarrota. Há algum tempo atrás, o mesmo tinha acontecido ao estado de Nova Iorque e a outros. A diferença é que nos Estados Unidos as instituições federais estão lá para actuar sempre que é preciso, assegurando a coesão do sistema. Na Europa, falha de mecanismos federais, o mesmo não acontece. E assim o efeito-dominó alastrou.

Primeiro, houve que salvar a pele de alguns bancos – entre os quais os portugueses BPN e BPP –, à custa de centenas de milhares de milhões de euros. Podemos legitimamente perguntar-nos se o esforço valeu a pena, para quem passou anos a fio a enganar os consumidores e os aforradores. Mas é bem possível que as consequências tivessem sido bem mais devastadoras se não o tivéssemos feito. Depois, sobreveio a crise das contas públicas de alguns estados-membros da zona euro.

A Grécia, que passou demasiado tempo a iludir as estatísticas e a fazer de cigarra, transformou-se no detonador por que os especuladores internacionais ansiavam. Os riscos de incumprimento da sua dívida pública abriram as portas da jaula onde as agências de rating e os especuladores mais vorazes se encontravam – exactamente os mesmos que haviam pactuado escandalosamente com as práticas mais obscenas das instituições financeiras que provocaram a crise. “O comportamento de rebanho dos mercados é, na verdade, de matilha – uma matilha de lobos” – afirmou, com notável a-propósito, o ministro das Finanças sueco na cimeira do fim-de-semana passado.

Ainda mais contundente tem sido o prémio Nobel Paul Krugman na sua denúncia das práticas especulativas dos “mercados” e, em especial das agências de rating, que acusa, sem papas na língua, de práticas de corrupção passiva. É bom recordar que as três grandes agências de rating mundiais, aquelas que classificam a seu bel-prazer a qualidade das dívidas empresariais e nacionais, são norte-americanas de berço e enfermam do preconceito antieuropeu comum nos Estados Unidos (e um pouco também no Reino Unido). Para elas, a dívida dos países do sul é duvidosa, a dos anglo-saxões segura. Para elas, o dólar é o refúgio certo, o euro uma ameaça.

Seria incorrecto, porém, assacar todas as culpas da crise do euro às malvadezas dos especuladores. A debilidade dos mecanismos de solidariedade financeira no seio da zona euro é real e notória. Sem esses dispositivos, qualquer crise num estado-membro pode conduzir à ruptura do sistema. Hoje é a Grécia. Amanhã poderá ser a Irlanda, Portugal ou a Espanha. Num futuro não muito longínquo, o Reino Unido ou mesmo a França.

Por isso, o Conselho de Ministros das Finanças da União Europeia decidiu, no passado fim-de-semana, criar um Fundo de Estabilização Financeira, que contará com uma dotação de 750 mil milhões de euros, numa tentativa de estancar os ataques à moeda europeia. Este fundo permitirá acudir, no limite de 60 mil milhões de euros, aos países em dificuldades, em troca da adopção de políticas financeiras austeras. É uma boa notícia, embora o seu efeito tranquilizante sobre os mercados financeiros não esteja ainda adquirido. Outra boa notícia é a criação de um novo mecanismo, dotado de 440 mil milhões de euros, destinado a socorrer países com dificuldades na balança de pagamentos, através de garantias fornecidas pelos países da zona euro, na proporção das suas participações no Banco Central Europeu.

Mas não tenhamos ilusões: com mais ou menos agências de rating, mais ou menos especuladores, Portugal tem de disciplinar as finanças públicas, reduzindo a sua despesa corrente, aumentar os níveis de poupança das famílias e estimular a competitividade do tecido económico. Uma equação difícil de resolver, mas para a qual os portugueses saberão encontrar a resposta certa.

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