18/10/08

Mário Soares: O 'crash' e o pânico


1. As bolsas do mundo inteiro fecharam com grandes perdas na semana passada. O pânico, quanto à crise, está a espalhar-se, como se previa. O plano Paulson, apresentado como "salvador", não restabeleceu a confiança. Bush falou e enviou mensagens, sete vezes, para defender o seu plano. Mas não foi ouvido. Pelo contrário, parece não ter tido os efeitos esperados. O G7, reunido em Washington para avaliar a crise, não foi capaz de adoptar uma iniciativa conjunta.
Com o epicentro na América, a crise chegou rapidamente à Europa, onde se reconhece - agora - que a crise vai generalizar-se. A reunião dos Quatro, em Paris, convocada por Sarkozy, revelou-se um perfeito disparate: não só porque fez reviver de facto a ideia de um directório para a União - ideia que os outros 23 Estados membros rejeitam - como por ter demonstrado as profundas discordâncias entre os Quatro, visto que cada um pensa dever tratar de si. Um golpe profundo na União Europeia, aceite, ao que parece, sem protesto, pelo presidente da Comissão. Note-se que os governos de Espanha e Portugal protestaram. Por proposta de Zapatero, Sarkozy, como presidente em exercício da União, resolveu convocar os líderes da Zona Euro, para uma nova reunião a fim de tentarem encontrar uma solução conjunta para a crise. Foi no domingo passado e dela resultou uma acalmia nas bolsas, uma vez anunciado um plano para salvar os bancos da falência. Mas isso não basta.
Com efeito, já começaram a circular rumores que põem em causa a existência do euro... Num momento de tão grande crise - maior do que a de 1929 -, os líderes políticos fracos, que nos governam, têm tendência a aceitar qualquer disparate na ânsia de esconder as suas fragilidades...
A questão, como tenho dito e repetido, não é remendar a crise e tentar salvar o sistema, os banqueiros e os gestores que dele se serviram é que são responsáveis. É mudar o sistema neoliberal, que nos conduziu onde estamos. Como? Regulamentando a globalização, introduzindo regras éticas estritas, o que passa, necessariamente, pela reforma do FMI, do Banco Mundial e da Organização Mundial do Comércio, integrando estas instituições obsoletas no universo das Nações Unidas, democratizando-as, combatendo a corrupção, punindo os culpados e acabando com os paraísos fiscais, por onde passam tantas negociatas menos transparentes.
Os chamados países emergentes - o Brasil, a Rússia, a Índia e a China - e outros, como o Japão e os países da América Latina, da África e da Ásia começam também a sentir os efeitos negativos da crise. A Rússia em especial. Curiosamente, os preços do petróleo, do gás, de certas matérias-primas, à excepção do ouro e dos produtos alimentares de grande consumo, começaram a descer. O que trará dificuldades crescentes aos países produtores. Isso não será, necessariamente, uma boa coisa, porque a descida desses produtos não se repercute de imediato nos preços ao consumo. Poderão mesmo desequilibrar os países produtores do Próximo Oriente, de África, da América Latina e, entre os emergentes, da Rússia, que exportam para os países desenvolvidos mas também importam deles os seus produtos mais sofisticados e caros.
2008 talvez acabe com uma excelente notícia: a vitória de Obama e dos democratas - espero -, que mudaria radicalmente a política americana, principal responsável pela crise. Mas o ano de 2009 ainda não vai ser um ano nada fácil, com muito desemprego, falências em cadeia de pequenas e médias empresas e ainda da recessão económica, apesar dos planos que a visam combater. A crise de 1929 trouxe-nos o reforço do comunismo e do fascismo (que lhe são anteriores) e a vitória e expansão do nazismo. Sabemos hoje onde os totalitarismos, de sinal contrário, nos conduziram. Esperemos que os políticos conheçam a História e tenham a coragem de livrar o mundo de novos cataclismos, lutando pela paz universal, pelo desenvolvimento sustentável e por mais justiça social e bem-estar para todos. Não são só receitas do socialismo democrático. São também uma forma de um novo capitalismo, regulado e esclarecido, preocupado com a justiça social e o ambiente, que suceda e substitua o capitalismo financeiro e especulativo, que tanto mal nos tem feito...

2 A NATO deu o aval para o ataque ao Afeganistão, após o choque psicológico do 11 de Setembro de 2001, às Torres Gémeas, em Nova Iorque, e ao Pentágono, em Washington. Lembro-me de ter escrito então um artigo crítico, no jornal Público, intitulado "Um precedente perigoso". Realmente, a NATO, uma organização defensiva criada, no início da Guerra Fria, para conter o expansionismo soviético, depois do colapso do comunismo ficou sem ter objectivo. Em vez de se dissolver - como devia - desenvolveu a ideia de se envolver no ataque e na invasão do Afeganistão. Foi um erro trágico, gravíssimo para o prestígio do Ocidente: transformar uma organização pacífica e defensiva, com mérito, no tempo da Guerra Fria, numa organização bélica - um braço armado dos americanos - para mais numa área do mundo bem fora do Atlântico Norte.
Passaram os anos. A guerra, longa, mortífera e sem solução à vista, complicou-se, envolvendo agora todos os países que enviaram contingentes militares - com este ou aquele pretexto - para o Afeganistão. Com o andar do tempo tornou-se numa guerra ainda mais complexa e desastrosa do que a do Iraque. Na fronteira do Afeganistão com o Paquistão, segundo as informações que correm no Ocidente, instalou- -se o santuário da Al-Qaeda, que aliás parece já ter sido bombardeado pelos americanos, sem resultados conhecidos.
Sucede que o Afeganistão se tornou num grande produtor e exportador de ópio - comércio próspero e ilegal, como se sabe, que se está a transformar num verdadeiro flagelo. Daí que as Nações Unidas tivessem a ideia peregrina de implicar a NATO na luta contra a produção e o tráfico de droga. Só faltava que uma organização militar e defensiva - como foi a NATO - se tornasse numa polícia antidroga, encarregada de destruir laboratórios e interceptar os transportes ilegais de droga, com toda a confusão suspeita que daí pode resultar...

3. O Prémio Nobel da Paz foi este ano atribuído ao antigo presidente da República da Finlândia Martti Ahtisaari (de 1994 a 2000). Foi um prémio justíssimo. Ahtisaari tem um imenso currículo de hábil e paciente negociador de conflitos para estabelecer a paz entre países e no interior de guerras civis. Embaixador na Tanzânia, em 1973, familiarizou-se com os problemas africanos. Foi negociador da independência da Namíbia, da transição democrática da Indonésia e, ultimamente, do Kosovo.
Tenho o privilégio de o ter conhecido bem, desde os anos longínquos em que Ahtisaari era presidente da Finlândia. Segui, depois, sempre, a sua carreira, tendo-o encontrado diversas vezes. Curiosamente, há duas semanas que o júri do Prémio para a Paz Houphouët-Boigny, de que faço parte, lhe atribuiu, por unanimidade, o prémio que tem o nome de um antigo presidente da Costa do Marfim, entregue na UNESCO, em cerimónia solene. Curiosamente, os dois maiores prémios da paz - Nobel e Houphouët-Boigny - foram atribuídos à mesma pessoa com poucas semanas de intervalo, como aliás também tinha sucedido, há alguns anos, com Shimon Peres e Arafat...

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